Doenças raras: os desafios da busca por um diagnóstico.
Thaluama Sacocchi Cardin
28 de fev. de 2023 - Leitura de
9 min
O dia que meu filho foi diagnosticado com uma doença rara foi o pior da minha vida. Mas também me deu a paz de saber que finalmente descobrimos o que nosso pequeno tinha. Mesmo com pais médicos, foram dois anos e seis meses buscando uma resposta. É muito tempo, mas pode-se dizer que tivemos sorte.
O diagnóstico de doenças raras pode levar em média de 5 a 10 anos no Brasil. Muitos pacientes podem viver décadas sem um nome correto para o que lhes acomete. E esse nome é muito importante: com ele, podemos entender qual pode ser a evolução da doença, a buscar tratamentos ideais para a qualidade e a expectativa de vida do paciente.
O Dia Mundial das Doenças Raras foi criado justamente com o objetivo de levar conhecimento à população em geral sobre a existência e os cuidados com essas patologias. Para todos nós, é essencial melhorar o acesso ao tratamento e à assistência médica aos pacientes que convivem com elas.
Como pediatra e mãe de uma criança atípica, decidi promover essa causa e sua importância. Passei dez anos estudando medicina e tive pouquíssimo contato com doenças raras na minha formação. Ainda são raros os especialistas dedicados a essas patologias. Existem apenas 17 serviços de saúde habilitados para diagnosticar e tratar desses pacientes, distribuídos em 11 estados e no Distrito Federal. A Região Norte do país não conta com nenhum serviço especializado.
Precisamos mudar isso. E a melhor forma de fazê-lo é difundindo informação e agindo. Doenças raras estão cada vez menos difíceis de diagnosticar devido aos avanços em sequenciamento genômico. Entender sua incidência real é importante para confirmar seus impactos na saúde da população e alocar os recursos necessários para a pesquisa por tratamentos.
Mas o que são doenças raras?
São definidas como doenças raras aquelas que acometem até 65 pessoas em cada 100 mil. Em comparação, a incidência da Síndrome de Down, uma doença genética considerada não rara, é de 143 pessoas a cada 100 mil.
Estima-se que aproximadamente treze milhões de brasileiros sofram com algum tipo de doença rara. O número é considerável, pois existem mais de 7 mil patologias que se encaixam na classificação. Síndrome de Cushing, Síndrome de Guillain-Barré, Esclerose lateral amiotrófica e Fibrose cística são algumas delas.
De acordo com especialistas, 80% dessas doenças são causadas por fatores genéticos, enquanto 20% advêm de causas ambientais, infecciosas e imunológicas. Justamente por serem raras, pacientes e familiares enfrentam muitas dificuldades na busca pelo diagnóstico. Mesmo tendo uma mãe e um pai médicos, meu filho Leonardo enfrentou conosco uma luta de quase dois anos e meio para chegar até a causa dos seus sintomas.
A dificuldade para encontrar o diagnóstico se repete também depois dele. Muitas vezes, os tratamentos dessas doenças são complexos, caros ou, ainda pior, inexistentes.
O Ministério da Saúde oferece em seu site um panorama sobre essas doenças. Veja alguns dados importantes:
- Para 95% das doenças raras não há tratamento, restando somente os cuidados paliativos e serviços de reabilitação;
- Apenas 3% têm tratamento cirúrgico e medicamentos regulares que atenuam sintomas;
- Outros 2% têm tratamento com medicamentos órfãos capazes de interferir na progressão da doença. Esses remédios precisam de incentivos para serem produzidos, pois são economicamente inviáveis para as empresas farmacêuticas.
Ainda segundo o Ministério da Saúde, cerca de 75% das doenças raras ocorrem em crianças e jovens. Os sinais podem surgir desde a fase inicial da vida e evoluir até os cinco anos de idade. Essas doenças quase sempre possuem caráter crônico, progressivo, degenerativo e, em alguns casos, podem levar à morte.
Por isso a Triagem Neonatal é importante: ela permite identificar algumas dessas enfermidades antes que os sintomas se manifestem.
Em maio de 2021, uma nova lei estabeleceu que o número de doenças raras detectadas pelo Teste do Pezinho oferecido pela pública de saúde, fosse ampliado de seis (6) para cinquenta (50). Esta Lei Federal passou a valer a partir do dia 27 de maio de 2022. Os Estados terão prazo de 4 anos para incorporar todas as doenças previstas na nova legislação.
Com uma maior cobertura de doenças raras detectadas pelo teste, espera-se que o diagnóstico precoce possibilite uma intervenção mais rápida, garantindo qualidade de vida para a criança, beneficiando suas famílias e a sociedade como um todo.
Mesmo assim, a doença do Léo ainda não fará parte dessa lista de exames detectáveis pelo teste. A busca pelo diagnóstico continuará sendo um desafio.
Quando surge uma suspeita
Leo desde bebê era intenso. Com três meses perdia o fôlego quando chorava intensamente (ficava roxo, prendia respiração). Era um bebê muito risonho e fofo, porém quando chorava nada o consolava. Sempre foi grande. Ganhava peso adequadamente, com bom crescimento.
Lembro que ele não rolava muito no berço, mas rolou no tempo certo. Era um bebê mais quieto do ponto de vista motor. Na introdução alimentar foi ótimo. Aceitava de tudo, comia bem, não vomitava.
Aos nove meses comecei a ficar atenta: ele não engatinhava. Colocava no chão e ele chorava, tentava se arrastar com muita, muita dificuldade. Então, com dez meses, começou a engatinhar, mas ainda com muito custo.
Com um ano e três meses deu alguns passinhos, mas foi andar sozinho mesmo com um ano e cinco meses, embora fosse uma marcha muito desequilibrada. O que me chamava atenção era que ele não dava tchau com a mão, não apontava, não fazia "sim" ou "não" com a cabeça, não imitava nossos gestos apesar de ser um bebê muito sociável e arteiro. Gostava de pessoas, barulho e mandava beijo.
Com um ano e meio ele não falava nada, então levei na primeira fonoaudióloga. Com dois anos ele começou a apontar com o dedinho – antes ele apontava com o nariz… achava engraçadinho. Por outro lado ficava preocupada pensando nas diversas maneiras que essa situação poderia afetar o meu filho caso ele não desenvolvesse sua fala no “tempo certo”.
Então eu estudava, estudava, e nada se encaixava. E, conforme o tempo ia passando, mais evidente ficava o atraso que ele apresentava. Notava que as crianças da idade dele já corriam e ele não; já subiam escada e ele não. Mas, com o tempo, ele ia atingindo esses marcos motores (hoje ele corre, sobe e desce escada sozinho), mas sempre com muito esforço. E a fala não evoluía. Com dois anos ele só falava “papa” e parecia que, quando aprendia alguma palavra, tipo “água”, depois era como se nunca a tivesse falado. As palavras sumiam. Com dois anos e meio ele falou “mamãe”.
Também notava que ele tinha intenção comunicativa, mas tinha uma dificuldade de planejamento. Pisava em cima dos objetos no chão como se não estivessem ali, parecia que tinha um andar desengonçado e, quando corria, parecia sempre que ia se desequilibrar e cair.
Três meses após iniciar na escola, a equipe pedagógica também notou atrasos. Relataram que a coordenação motora dele estava menos avançada em relação às crianças da mesma idade. Ele preferia adultos a crianças e, muitas vezes, ficava mais no cantinho dele.
Naquele dia eu chorei muito, porque trouxe à tona algo que vinha pensando há bastante tempo. Começou a se reforçar em mim a suspeita de que ele teria TEA (Transtorno do Espectro Autista). Mas, na minha cabeça, ainda não era isso. Eu passava noites acordada, estudando, tentando encontrar o diagnóstico do meu filho.
Até os dois anos de idade os profissionais achavam que não era nada. Agora com dois anos e meio, começaram a ver os atrasos porém apenas o consideravam “diferente”. Alguns achavam que o isolamento e o estresse da pandemia poderiam ser a causa. Mas eu não concordava, ele sempre foi uma criança muito estimulada.
Nesse estágio, já havíamos ido a neurologistas, foniatras, pediatras, pediatras do desenvolvimento, psicólogos, psicanalistas, psiquiatras, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas. Ninguém sabia o que ele tinha.
O neurologista e o foniatra que acompanhavam o caso orientaram fazer estimulação e intensificar as sessões de fonoaudiologia e terapia ocupacional. Três meses depois, nada tinha mudado.
Em uma das consultas, a foniatra solicitou uma Ressonância Nuclear Magnética (RNM) de crânio. Meu marido, também médico, foi discutir o caso com um amigo dele, excelente neuroradio que nos orientou acrescentar ao pedido uma espectroscopia de fluxo.
Finalmente, um diagnóstico
A falta de conhecimentos científicos e médicos especializados — ou mesmo preparados para lidar com doenças raras — faz com que muitos pacientes como o Léo permaneçam sem diagnóstico por anos, enfrentando grandes desafios para obter o cuidado adequado.
Outro desafio comum nesta jornada é o desenvolvimento de tratamentos eficientes para doenças raras. A quantidade limitada de pacientes e a complexidade dessas patologias são fatores que contribuem para isso, já que os sinais e sintomas podem variar bastante, mesmo em indivíduos com a mesma condição. Essas variações de sintomas também podem gerar variações de respostas para os tratamentos, o que justifica a necessidade de um cuidado personalizado para cada caso.
Mas, graças à persistência da investigação, e também do meu marido, Gustavo, encontramos o diagnóstico. O RNM de crânio do Léo estava normal, porém, na espectroscopia de fluxo, ele não fazia pico de creatina. Com essa hipótese já levantada, passamos com a geneticista. E, com o teste genético exoma, usado para encontrar alterações no DNA, encontramos o diagnóstico de Síndrome de Deficiência de Creatina Cerebral. Léo tinha um erro inato do metabolismo.
A creatina é um composto produzido pelo fígado, rins e pâncreas, a partir de alguns aminoácidos. Em nosso organismo, ela é armazenada em grande parte nos tecidos musculoesqueléticos e também no coração, músculos lisos, cérebro e testículos. Sua deficiência pode ter efeitos no desenvolvimento do cérebro e do sistema nervoso.
Com essa informação, fizemos uma investigação genética na nossa família. Os resultados vieram normais, inclusive do meu filho mais novo, Caetano. A mutação no DNA do Léo aconteceu ao acaso, “de novo”.
Inúmeras síndromes e doenças raras podem também cursar com sintomas semelhantes com atraso de fala, atraso do desenvolvimento, atraso cognitivo e distúrbios do comportamento (TEA/TDAH), convulsões.
Mas aprendi com uma grande chefe - Dra. Heloísa Marques - que nós médicos e, agora, incluo todos os profissionais da saúde e os pais de crianças atípicas, temos que ser obstinados por um diagnóstico.
Um diagnóstico nos ajuda entender sobre a doença, trilhar terapias específicas, procurar tratamento e associações que pesquisam e estudam sobre o assunto.
Juntos, somos mais fortes
Após o diagnóstico nós conhecemos uma associação séria e dedicada que estuda o problema do nosso filho.
É fato que as pessoas que convivem com doenças raras enfrentam maior vulnerabilidade em termos psicológicos, sociais, econômicos e culturais. Neste sentido, acredito que uma legislação apropriada poderia ajudar a superar algumas dessas dificuldades. No entanto, como conquistar vitórias para uma causa que, por definição, atinge uma pequena parcela da população?
Esse é o principal desafio de quem convive e luta por mais apoio para o cuidado, a pesquisa e a busca pela cura de doenças raras. É preciso equilibrar sempre a seriedade do assunto no âmbito individual com seu impacto na vida da comunidade em geral. E é justamente por isso que comunidades engajadas de pais e pacientes se formam em torno dessas doenças. Para ganharmos a força que, sozinhos, nunca teríamos.
A Associação de Deficiência de Creatina (ACD) está focada em mudar a história das pessoas com Deficiência de Creatina Financia pesquisas médicas para tratamentos e curas para as Síndromes de Deficiência de Creatina Cerebral. Somos muito gratos a essa associação e temos esperança de em um futuro encontrarem um tratamento para as deficiência de creatina. Para saber mais sobre o seu trabalho, clique aqui ou siga @creatineinfo nas redes sociais.
Aqui no Brasil, os pacientes com doenças raras e graves podem contar com a “AADORA” (Associação de Apoio às Pessoas com Doenças Raras), uma associação beneficente, sem fins lucrativos, cujo objetivo é conscientizar as pessoas sobre o universo que gira ao redor das pessoas portadoras de doenças raras.
Hoje, me sinto grata pelo apoio que recebo da comunidade engajada em melhorar o prognóstico de pacientes com doenças raras. Este relato é também um agradecimento ao importante trabalho que eles realizam. Para além do texto, podem contar comigo também na linha de frente.
Sobre a autora
Meu nome é Thaluama Saccochi Cardin. Sou pediatra, fiz residência na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Possuo título de especialista pela Sociedade Brasileira de Pediatria e fiz especialização em Infectopediatria no Instituto da Criança de São Paulo (FMUSP).
Queria contar minha experiência com meu primeiro filho - minha jóia rara.
Você pode acompanhar mais sobre o dia-a-dia de uma mãe atípica e típica de dois lindos pelas minhas redes.